🎈 Brincar é Falar: Como o Jogo Simbólico Constrói Linguagem, Emoção e Literacia

1. Quando o Brincar Fala Mais Alto que Palavras

A Matilde tinha 3 anos e ainda não falava frases completas. Na escola, evitava o grupo e isolava-se com os mesmos dois brinquedos. Um dia, durante uma sessão, entreguei-lhe uma colher de madeira e um pano. Em poucos minutos, ela estava a alimentar um urso de peluche e a embalar uma “filha invisível”. Aquilo que parecia apenas brincadeira revelou-se uma narrativa interna riquíssima — e, para mim, um diagnóstico silencioso.

O jogo simbólico, também chamado de faz-de-conta, é mais do que entretenimento: é um reflexo do que a criança sente, pensa e compreende. E, por isso mesmo, é uma ferramenta essencial na avaliação e promoção do desenvolvimento infantil.

2. O que é o Jogo Simbólico e Porque É Crucial

O jogo simbólico surge tipicamente entre os 18 meses e os 2 anos e consolida-se até aos 6. É caracterizado pela capacidade da criança em usar objetos, gestos ou palavras para representar algo que não está presente. Quando uma criança transforma um bloco num avião ou dá ordens a um boneco como se fosse um médico, está a exercitar pensamento abstrato, linguagem intencional e organização narrativa.

As fases mais comuns incluem:

  • Brincar de substituição simples (ex.: usar uma banana como telefone)

  • Sequências narrativas (ex.: preparar uma refeição e servir aos bonecos)

  • Brincar sociodramático partilhado (ex.: representar papéis como pai, mãe, professora)

Estas etapas não só estruturam o pensamento, como também preparam as bases para a aprendizagem formal, especialmente a leitura e a escrita.

3. Brincar é Falar: A Relação Entre Jogo e Linguagem

O brincar simbólico não é apenas paralelo à linguagem — é sua antecâmara. Pesquisas mostram que o desenvolvimento do faz-de-conta está diretamente associado à emergência do vocabulário, à complexidade sintática e ao uso funcional da linguagem.

Durante o brincar:

  • A criança nomeia objetos e ações;

  • Aprende a usar frases completas;

  • Envolve-se em turnos conversacionais espontâneos;

  • Desenvolve competências narrativas, com lógica temporal e causal.

Este tipo de linguagem é altamente transferível para o contexto académico. Crianças com um brincar simbólico mais rico demonstram melhor desempenho em compreensão leitora, produção textual e expressão oral.

Em crianças com Síndrome de Down, por exemplo, o jogo simbólico tem sido associado a ganhos relevantes na aquisição de vocabulário e organização narrativa, mesmo quando as competências verbais iniciais são limitadas.

4. A Emoção que se Ensaia no Faz-de-Conta

Brincar é também uma linguagem emocional. Quando uma criança representa que a boneca está triste ou que um monstro a persegue, está a ensaiar situações de perda, medo, rejeição — emoções reais, canalizadas através da fantasia.

Modelos como o DIR/Floortime defendem que a simbolização é um reflexo direto da maturação emocional e relacional. Brincar ajuda a:

  • Regular emoções intensas;

  • Expressar frustrações sem recorrer à agressividade;

  • Desenvolver empatia, ao assumir o lugar do outro.

Nas perturbações do neurodesenvolvimento, como o autismo, a ausência de jogo simbólico é um dos primeiros sinais clínicos. Ensinar a criança a brincar, através de modelação terapêutica, é frequentemente a porta de entrada para ganhos em linguagem, contacto ocular, flexibilidade cognitiva e vinculação emocional.

5. Da Imaginação à Leitura: Jogo Simbólico e Literacia Emergente

Muitos adultos não percebem que o brincar simbólico é o primeiro passo para a leitura e a escrita. Quando a criança inventa histórias, estabelece sequências, dramatiza cenários com princípio, meio e fim, ela está a:

  • Construir enredos lógicos, como os que lemos em livros;

  • Utilizar marcadores temporais e causais (“depois”, “então”, “porque”);

  • Organizar o pensamento em palavras, preparando-se para o texto escrito.

A consciência fonológica, a estrutura narrativa e a metalinguagem — pilares da literacia emergente — estão profundamente enraizados na prática simbólica. É por isso que ambientes ricos em brincadeira são ambientes que promovem leitores mais competentes e escritores mais expressivos.

6. Quando o Brincar Está em Silêncio: Sinais de Alerta

A ausência de jogo simbólico até aos 3 anos pode ser um indicador relevante de risco. É importante estar atento a:

  • Brincadeiras exclusivamente repetitivas ou funcionais (ex.: alinhar carros);

  • Falta de imaginação nos enredos ou no uso de objetos;

  • Dificuldade em simular papéis ou participar em jogos partilhados;

  • Resistência a alterar o curso da brincadeira.

Estes sinais podem refletir atrasos na linguagem expressiva e recetiva, défices cognitivos ou desafios emocionais.

Além disso, o brincar simbólico requer duas competências fundamentais:

  • Atenção conjunta – capacidade de focar um objeto ou ação com outra pessoa, essencial para a aquisição da linguagem e da interação social;

  • Intenção comunicativa – a motivação para partilhar algo com outro, visível nos gestos, olhares e tentativas verbais.

A ausência ou fragilidade destas competências exige atenção e, frequentemente, encaminhamento para Terapia da Fala ou avaliação multidisciplinar.

7. Escutar o Brincar é Cuidar do Futuro

Brincar é um direito da infância, mas também uma responsabilidade dos adultos que acompanham o seu crescimento. Ignorar o jogo simbólico é ignorar a linguagem do desenvolvimento.

Pais, educadores e terapeutas podem — e devem —:

  • Criar espaços e tempos protegidos para o faz-de-conta;

  • Envolver-se ativamente nas brincadeiras, sem controlar;

  • Modelar linguagem rica durante o brincar;

  • Observar sem julgamento e escutar sem pressa.

Através do jogo simbólico, abrimos portas para que cada criança construa o seu pensamento, verbalize o que sente e ensaie o que um dia será capaz de viver. E quando o brincar acontece com liberdade, escuta e intenção, a aprendizagem já começou.

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