O Som da Inovação: Como a Tecnologia Transforma o Treino Auditivo em Casa

Imagine uma criança a rir enquanto “joga” um jogo no tablet, sem se aperceber de que está, na verdade, a treinar o seu cérebro para ouvir e processar sons de forma mais eficaz. Ou um adulto, no conforto do seu sofá, a recuperar a clareza da fala que o ruído do dia a dia lhe tinha roubado. Esta é a promessa da tecnologia na reabilitação auditiva, uma área que tem evoluído a um ritmo impressionante. Se antes o treino auditivo era um processo confinado a clínicas, hoje a inovação digital permite-nos levar a terapia para o ambiente doméstico, transformando a reabilitação numa jornada mais acessível e, acima de tudo, pessoal (Murdin et al., 2022). Mas quão eficaz é este novo mundo de possibilidades? A investigação mais recente oferece-nos um panorama detalhado (Völter et al., 2021).

A Confirmação da Ciência: O Futuro da Reabilitação Já Chegou

A boa notícia, confirmada por uma vasta revisão de estudos, é que o treino auditivo em casa com o auxílio da tecnologia é, de facto, eficaz. A investigação mostra que o treino auditivo baseado em casa produz melhorias significativas na perceção da fala e nas habilidades auditivas (Başaran et al., 2023; Kim & Bahng, 2023). Estudos recentes, como o de Szymański et al. (2025), mostraram melhorias mensuráveis na identificação do contorno melódico em utilizadores de implantes cocleares, reforçando a validade do treino contínuo em casa.

Além disso, os benefícios do treino podem ser sustentados ao longo dos meses (Magits et al., 2022), e os programas são eficazes tanto para crianças, como para adultos e idosos, independentemente do uso de aparelhos auditivos ou implantes cocleares (Brasil & Schochat, 2018; Silva et al., 2023). No entanto, a ciência é honesta sobre as suas limitações. Algumas melhorias tendem a ser limitadas aos materiais usados durante o treino, nem sempre se generalizando para outras tarefas ou ambientes do dia a dia (Henshaw & Ferguson, 2013).

O Envolvimento do Utilizador: O Coração da Tecnologia

A eficácia de qualquer terapia depende da adesão do paciente. É aqui que a tecnologia brilha. O envolvimento do utilizador é um fator crítico, e elementos como a gamificação e a aprendizagem adaptativa surgem como catalisadores poderosos da motivação (Ratnanather et al., 2021). Para as crianças, a gamificação é uma ferramenta particularmente eficaz, transformando um processo potencialmente tedioso num jogo divertido e recompensador (Xiang et al., 2024; Liu et al., 2024).

A inteligência artificial (IA) e os sistemas de tutoria inteligentes também se destacam. Estes sistemas ajustam a dificuldade do treino de forma dinâmica, personalizando a experiência de forma que cada utilizador esteja sempre no nível de desafio ideal (Gnadlinger et al., 2024), o que é crucial para manter a motivação e a eficácia ao longo do tempo. Este tipo de personalização e a monitorização remota contínua reforçam a adesão e permitem ajustes de treino, o que otimiza os resultados (Szymański et al., 2025).

Para Além da Teoria: O Dia a Dia da Reabilitação

A adoção da tecnologia na reabilitação auditiva não se limita aos resultados clínicos, tem também implicações práticas significativas. As abordagens de teleterapia domiciliar reduzem os custos, tempo de consulta e encargos de viagem para pacientes e clínicos, ao mesmo tempo que mantêm ou melhoram os resultados clínicos (Völter et al., 2021; Lowe et al., 2022). Esta conveniência é especialmente valiosa em contextos onde o acesso a clínicas especializadas é limitado.

Contudo, a jornada não é isenta de obstáculos. A implementação prática enfrenta desafios como problemas técnicos, a interferência do ruído ambiente em casa, e as barreiras de usabilidade e literacia digital (Murdin et al., 2022; Xu et al., 2024), que podem afetar o uso sustentado. É por isso que o sucesso de uma abordagem tecnológica depende não só da qualidade do software, mas também do suporte e orientação humana para superar estes desafios.

O Futuro da Reabilitação: Uma Visão Integrada

A análise comparativa revela que programas de treino personalizados e não personalizados podem produzir melhorias semelhantes, o que sugere uma flexibilidade no design da intervenção sem comprometer a eficácia (Magits et al., 2022). A abordagem mais promissora parece ser a híbrida: a combinação de sessões guiadas por profissionais com o autotreino em casa, o que aumenta a flexibilidade e a adesão do utilizador.

A investigação futura aponta para a necessidade de padronizar as medidas de resultados e conduzir ensaios clínicos mais robustos para solidificar o nosso conhecimento. A integração de IA, o desenvolvimento de conteúdos multilingues e a atenção às necessidades específicas de cada população são as próximas fronteiras a serem exploradas (Henshaw & Ferguson, 2013).

Em última análise, o que a ciência nos mostra é que o treino auditivo assistido por tecnologia não é uma substituição para a intervenção clínica, mas sim um componente valioso de uma reabilitação abrangente (Murdin et al., 2022). Ele democratiza o acesso, personaliza a experiência e transforma o que poderia ser um processo árduo numa jornada de descoberta e desenvolvimento, passo a passo, no conforto de casa. O som da inovação na terapia auditiva é, afinal, o som de um futuro mais claro e acessível para todos.

Referências

Başaran, M., Arslan, H., & Kutlu, F. (2023). Effect of computerized training programs for attention and perception for patients with hearing aids. Dementia and Geriatric Cognitive Disorders. https://doi.org/10.1159/000534156

Brasil, P. D., & Schochat, E. (2018). Eficácia do treinamento auditivo utilizando o software programa de escuta no ruído (per) em escolares com transtorno do processamento auditivo e baixo desempenho escolar. https://doi.org/10.1590/2317-1782/20182017227

Gnadlinger, F., Werminghaus, M., Selmanagić, A., Filla, T., Richter, J., Kriglstein, S., & Klenzner, T. (2024). Incorporating an intelligent tutoring system into a game-based auditory rehabilitation training for adult cochlear implant recipients: Algorithm development and validation. JMIR Serious Games, 12, e55231-e55231. https://doi.org/10.2196/55231

Henshaw, H., & Ferguson, M. A. (2013). Efficacy of individual computer-based auditory training for people with hearing loss: A systematic review of the evidence. PLOS ONE, 8(5). https://doi.org/10.1371/JOURNAL.PONE.0062836

Kim, J. H., & Bahng, J. (2023). Research on effective methodology for hearing impairment rehabilitation; based on a diary study for elderly onlineauditory training. Audiology and Speech Research, 19(4), 287-293. https://doi.org/10.21848/asr.230126

Liu, B., Fan, Y., Xu, M., Chang, F., Shi, Y., & Zhao, L. (2024). Effectiveness of a gamified mobile application in enhancing treatment adherence for children with amblyopia: A explorative study (preprint). https://doi.org/10.2196/preprints.60309

Lowe, S. C., Henshaw, H., Wild, J., & Ferguson, M. A. (2022). Evaluation of home-delivered live-voice auditory training for adult hearing aid users involving their communication partners: A randomised controlled trial. International Journal of Audiology, 62(1), 89-99. https://doi.org/10.1080/14992027.2021.2005834

Magits, S., Boon, E., Meyere, L. D., Dierckx, A., Vermaete, E., Francart, T., Verhaert, N., Wouters, J., & Wieringen, A. V. (2022). Comparing the outcomes of a personalized versus nonpersonalized home-based auditory training program for cochlear implant users. Ear and Hearing, 44, 477-493. https://doi.org/10.1097/AUD.0000000000001295

Murdin, L., Sladen, M., H., Williams, Bamiou, D., Bibas, A., Kikidis, D., Oiknonomou, A., Kouris, I., Koutsouris, D., & Pontoppidan, N. H. (2022). Ehealth and its role in supporting audiological rehabilitation: Patient perspectives on barriers and facilitators of using a personal hearing support system with mobile application as part of the evotion study. Frontiers in Public Health, 9. https://doi.org/10.3389/fpubh.2021.669727

Silva, J. D. M., Silva, B. C. S., Lopes, N. B. F., Jacob, R. T. D. S., & Moret, A. L. M. (2023). Effectiveness of computerized auditory training on speech perception in children with hearing loss: A systematic review. American Journal of Audiology. https://doi.org/10.1044/2023_aja-23-00078

Szymański, K., Gawryluk, K., & Brancewicz, M. (2025). Continuous monitoring of temporal skills during long-term in-home training by cochlear implant users. Heliyon. https://doi.org/10.1016/j.heliyon.2025.e41817

Völter, C., Stöckmann, C., Schirmer, C., & Dazert, S. (2021). Tablet-based telerehabilitation versus conventional face-to-face rehabilitation after cochlear implantation: Prospective intervention pilot study. https://doi.org/10.2196/20405

Xiang, Y., Zhang, Z., Chang, D., & Tu, L. (2024). The impact of gamified auditory-verbal training for hearing-challenged children at intermediate and advanced rehabilitation stages. Games for Health Journal. https://doi.org/10.1089/g4h.2023.0213

Xu, C., Schell-Majoor, L., & Kollmeier, B. (2024). Feasibility of efficient smartphone-based threshold and loudness assessments in typical home settings. https://doi.org/10.1101/2024.11.19.24317529

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